segunda-feira, 16 de agosto de 2010

CILÍCIO - (SOFRIMENTO VOLUNTÁRIO)

CILÍCIO (SOFRIMENTO VOLUNTÁRIO)


O dicionário define “cilício” como sacrifício ou mortificação a que alguém se submete, voluntariamente, atendendo a um propósito qualquer. É muito antiga a crença de que impor sofrimentos ao próprio corpo, constituiria uma forma de alcançar benefícios espirituais. Amplamente difundida no passado, ela ainda hoje sobrevive, em casos isolados, sempre como expressão de fanatismo, ignorância e superstição.

O ser humano ainda pouco esclarecido, comete com freqüência excessos e enganos na utilização do seu corpo, na falsa suposição de que o mesmo seria o causador de tais desvios de comportamento, pelo que, castigá-lo por meio de privações ou sevícias, constituiria o remédio para evitar ou corrigir tal tendência, impedindo suas manifestações. Isso é um equívoco, pois o corpo apenas atende, passivamente, às determinações de seu condutor – o Espírito. Por outro lado, tanto o cilício como o vício é danoso, pois enquanto o primeiro enfraquece e cria problemas diversos ao corpo, o segundo cria dependência que prejudica física e moralmente as pessoas.

Há um componente, não raro, de ignorância e fantasia no cilício, sugerindo, por exemplo, que a não satisfação de um desejo, declarado por uma grávida, envolvendo um alimento qualquer, possa marcar o filho que a gestante guarda no ventre, com um angioma (mancha vermelha no rosto). Pior acontecia na Idade Média, quando os cristãos, inspirados na ignorância, levaram a extremos a afirmativa de Jesus, contida no Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados” (Mateus 5:4).

Entendendo esse consolo como uma compensação pelos sofrimentos, o ideal seria então sofrer bastante na Terra para garantir recompensas maiores no Céu. Tal entendimento, amplamente divulgado, gerou comportamentos absurdos, com destaque para as várias Cruzadas, guerras promovidas pelos reis cristãos na Europa, sob a alegação de que estavam libertando o solo sagrado da Palestina, em poder dos árabes. – Deus quer o sofrimento! - era o grito de guerra. Em função dessa orientação, envolveram-se milhares de fiéis ingênuos, dispostos ao tormentoso cilício dessa aventura, com a fantasia de que todos os “cruzados” (os que lutavam nessas guerras) seriam levados para o paraíso. Por outro lado á idéia do cilício como auto-flagelação, sugeria um comportamento alienado. Havia os que se internavam em mosteiros ou lugares ermos, totalmente isolados, com o propósito de fugir dos males e contatos com a sociedade. Muitos se propunham ao mutismo absoluto, passando anos sem pronunciar uma palavra. Outros açoitavam o próprio corpo para se livrarem dos seus pecados...

Em meados do século VI, em Antioquia, na Síria, um piedoso cristão chamado Simeão, instalou-se no alto de elevado monte. Inteiramente dedicado à devoção, era atendido em suas necessidades por amigos que mais tarde imitaram o
seu exemplo. Submetido às intempéries e ao desconforto, passou os restantes trinta anos de existência sem jamais descer do monte. Algum tempo após sua morte foi canonizado, recebendo o título de São Simeão. Nos dias atuais, se alguém tentasse realizar a mesma proeza, certamente seria internado em algum manicômio; mas na Idade Média, tais aberrações eram comuns, consideradas como atos de extrema piedade e fé. Não obstante o progresso alcançado pela humanidade, subsiste até hoje, pessoas ignorantes com a idéia do cilício, da mortificação, em favor da depuração do corpo, como passaporte para o Céu.

Há quem se proponha a carregar uma cruz, imitando o sacrifício de Jesus; outros subindo de joelhos as escadarias de igrejas por penitência. As próprias rezas, envolvendo intermináveis e cansativas repetições, nos rituais religiosos, representam uma forma amena de cilício a que se propõem certas pessoas, crendo com isso merecer os favores celestiais. Outras pessoas acreditam que o muito rezar, na maioria das vezes, apenas com os lábios, ficando o pensamento ocupado com outros assuntos, é que vai lhes garantir a assistência Divina. O que tem valor na oração é o pensamento e o sentimento voltado para a sintonia com o Pai Celestial, no sentido de sermos amparados pela Sua infinita misericórdia.

Temos um exemplo de sinceridade e fé, na pequena história do pedreiro Zé. Ele era analfabeto e trabalhava próximo a uma igreja; todos os dias ao sair do trabalho, ele entrava na igreja embora não soubesse rezar. Passado alguns meses, ele adoeceu e foi internado em uma enfermaria de hospital. As enfermeiras notaram que ele em determinada hora do dia, ficava alegre e muito feliz. Curiosas, elas perguntaram ao pedreiro Zé, qual o motivo daquela alegria diária. Ele então respondeu dizendo: “Quando eu trabalhava, todos os dias entrava na igreja e dizia: “Jesus, vim te visitar”. Agora que estou aqui, é Ele quem vem me visitar.

No capítulo V item 26 de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, diz um Espírito protetor: “Se quereis fazer um cilício, aplicai-o às vossas almas e não aos vossos corpos; fustigai o vosso orgulho, recebei sem murmurar as humilhações, eliminai o vosso egoísmo, deixai de ser ambicioso pelas posses terrenas. Aí tendes o verdadeiro cilício, porque atestarão a vossa coragem e a vossa submissão à vontade de Deus”. Fica, portanto, bem claro que o verdadeiro cilício está no combate às imperfeições espirituais, causas geradoras de nossos males.

As ciências psicológicas têm avançado bastante nesse particular, demonstrando que os males do paciente se originam muitas das vezes de complexos de culpa. Essas idéias aproximam-se dos princípios espíritas, faltando apenas, aos psicólogos, avançar nas pesquisas e descobrir que essas situações estão vinculadas ás nossas atitudes infelizes do presente e de existências passadas.

Na legislação penal humana, há as penas alternativas para crimes leves e para criminosos primários. Alguém que comete uma agressão ou outras infrações simples, ao invés de sofrer a privação da liberdade, assume o compromisso de realizar serviços comunitários por determinado período, ou o pagamento de cestas básicas a entidades filantrópicas. Assim vemos a justiça terrena imitando a Justiça Divina.

Sejam os nossos débitos determinados pelo que estamos fazendo ou pelo que fizemos, de comprometimento no presente ou no passado, é preciso lembrar uma afirmativa importante do profeta Oséias, citada por Jesus, em Mateus 9:13 que diz: “Misericórdia quero, e não sacrifícios”. A mesma idéia está no Sermão da Montanha, quando Jesus firma: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”. Mt. 5:7.

Deus não quer que mortifiquemos o nosso corpo, que nos isolemos da sociedade, que carreguemos complexos de culpa conscientes ou inconscientes a nos infelicitar. O Pai Celestial espera apenas que cultivemos a misericórdia, e poderíamos defini-la como a capacidade de nos compadecermos das misérias
dos nossos semelhantes, fazendo algo por amenizá-las. O supremo cilício consiste em lutar contra a tendência que temos ao acomodamento, à inércia; para que participemos efetivamente em favor de nosso semelhante. Todo aquele que cultiva o bem e ajuda o próximo, já tem o bem no coração, libertando-se de
temores, dúvidas, sacrifícios e superstições.

Uma dirigente de uma creche filantrópica deixou admirada uma repórter que preparava uma matéria sobre entidades de atendimento a crianças carentes. Observou a repórter que tudo estava organizado, limpo, trabalho impecável, funcionários dedicados, e ela comentou com a dirigente: - “Soube que a senhora é o cérebro e o coração desta entidade, dando-lhe essa feição acolhedora e eficiente, e comentam de sua dedicação e desprendimento na atividade”. A dirigente falou que “era um exagero, inspirado na bondade dos que trabalhavam com ela. Sou apenas uma peça na engrenagem, e saiba que não tenho mérito algum. Estou aqui cumprindo pena alternativa”. – A repórter espantou-se: - “Pena alternativa?” E completou dizendo: “Não posso imaginar a senhora praticando algum delito...” A dirigente voltou a dizer: - “Hoje não, minha filha; mas no passado fui uma criminosa”.

Falo agora como espírita. “Na existência anterior pratiquei várias vezes o aborto delituoso, acumulando desajustes que nesta existência se manifestaram desde a juventude, na forma de grande angústia, que terminou me levando para a depressão. Com isso sofri muito até conhecer a Doutrina dos Espíritos. Tomei conhecimento do meu passado e a Bondade Divina concedeu-me, por abençoada alternativa, me engajar nesta entidade. Estou resgatando meus débitos sem tristezas, sem reclamação, exercitando o amor que neguei outrora a outras crianças de quem deveria ser mãe. Abençoada Misericórdia Divina que nos oferece o trabalho no amor, substituindo a dor, no resgate dos nossos débitos!”

O Evangelho nos informa que Deus fez o ser humano, não para viver isolado, mas em sociedade, uns ajudando aos outros, progredindo todos. Os que fazem votos de silêncio, prescrito por certas seitas, apenas cometem uma tolice. Entretanto, o silêncio é útil, porque permite a concentração e a paz necessária ao espírito para entrar em contato com as forças da Natureza e da Espiritualidade.
Não há mérito em procurar as aflições por sofrimentos voluntários, a não ser quando o sofrimento ou a privação têm por objetivo o bem do próximo. Nesse caso é um ato de caridade, mas quando o objetivo é para si próprio, resulta em fanatismo, sem merecimento algum.

Contentai-vos com as provas que Deus vos possibilita e não aumenteis sua carga, orienta o Evangelho. Torturar e martirizar voluntariamente vosso corpo é desrespeitar a Lei de Deus, declara os Protetores Espirituais. Vejamos um exemplo de cilício na história de um jovem: - Será que sou um covarde ? Os “velhos” me avisaram sempre para não experimentar, pois depois não tem volta. Mas... se todo mundo avisa que é ruim e a turma fuma, é porque não é tão mau assim. Que será que eles sentem ? – “Tá com medo, em cara ? Bem que eu sabia que tu não era de nada”, falou o chefe da turma. E as risadas de deboche estavam em meus ouvidos. Não agüentava mais ser gozado na presença das garotas, além do mais eu queria ser admitido na turma. Eles eram admirados e ninguém se metia e podia com eles. Afinal, uma experimentadinha só, uma única
e se eu não gostar deixarei. Aí eu experimentei a droga . . .

(8 meses depois) Meu Deus! Estou ficando louco; acho que o meu velho já desconfia, pois a última vez que roubei dinheiro dele peguei demais! – Aquele desgraçado vendedor subiu o preço; mas eu precisava conseguir mais e tinha de arranjar o dinheiro de qualquer jeito. Acho até que o velho prefere que eu pegue o dinheiro dele do que de outra pessoa. Será? – Que importa, se não conseguir dele, vou conseguir de qualquer jeito e de qualquer um.

(Mais 4 meses depois) Não acredito, não posso acreditar! Será verdade? Disseram-me que ontem à noite, bati na minha “velha” porque ela não quis me dar dinheiro. Afinal, tinha tomado uma dose extra e ainda não estava satisfeito. Peguei na “marra” e ela quis me impedir de sair de casa e eu a derrubei violentamente, ficando ela desacordada no chão; e que me acharam tempo depois desmaiado na calçada do beco... Como é que eu não consigo me lembrar de nada? Como fui ficar nessa situação?

(Mais 6 meses depois) Estou preso. Nunca poderia imaginar que isso fosse me acontecer. Fui além do que me falaram. A prisão é horrível; a solidão e a vergonha de estar aqui é terrível. Será que o inferno é pior que isto? Estou um farrapo humano, desfigurado, cadavérico, doente e desprezado. Mas o pior não é a aparência externa; é no que me transformei; sem vontade própria, sem liberdade, e com o remorso na consciência do que fiz passar os meus “velhos”...
Onde estão os caras ‘bons”; aqueles que as garotas olhavam com admiração; os corajosos, os que sabiam das coisas? – Dois estão cumprindo pena aqui comigo, e me disseram que outros já morreram de over-dose. Daquela turma, só lembro do fornecedor da droga e também da lembrança do crime praticado. Eu fui um covarde e me deixei levar pela conversa dos outros, sem ouvir os conselhos dos meus “velhos”. . . (soluços) Meu Deus, como gostaria de continuar “não sendo de nada”, como disse o chefe da turma. Eu só queria ter uma chance de voltar atrás no tempo, mesmo que todos zombassem de mim... por que não segui os conselhos dos meus velhos ?- Aqui termina a história desse jovem.

A Doutrina dos Espíritos sempre se posicionou contra os sofrimentos voluntários, mostrando a sua inutilidade e seu caráter nocivo. Qualquer gênero de cilício que traga sofrimento nunca é agradável a Deus e a Doutrina Espírita nos alerta sobre tais práticas. É oportuno lembrar por fim, que o castigo imposto ao próprio corpo, assume muitas das vezes, caráter psicológico, por julgar-se, aquele que errou indigno de reparação e de ser feliz. Servir-se alguém da liberdade, de alguma ocasião de lazer sadio, para ajudar o próximo, é uma caridade legítima que trás felicidade sempre a todos os que gozam desse privilégio. Este é o único cilício que é agradável a Deus


Bibliografia:
Evangelho de Jesus
“Evangelho Segundo o Espiritismo”


Jc.
S.Luis, 22/8/2006

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