Calcula-se
que mais de 160.000 brasileiros trabalhem em condições deploráveis – e o Brasil
que já foi exemplo mundial de combate a essa chaga, está ficando cada vez pior,
em razão de escassez de verbas para as equipes de fiscalização. A revista
“Veja”, publica a foto de 48 pessoas, que formam uma galeria que o país não
gosta de ver. São vários Francíscos,
Antônios, Josés, Carlos, Luís, Joãos, uma Vicentina e outros, que
mostram um grande drama brasileiro: o trabalho em condições sub-humanas, e
análogas às de escravidão. Sim, todas essas pessoas foram escravizadas – em
pleno século XXI. Enredadas em algumas dívidas impagáveis, manipuladas pelos
patrões e submetidas a situações bastante deploráveis de trabalho, elas
chegaram a beber a mesma água que os porcos, e algumas delas sofreram a
humilhação de serem espancadas, para não falar de constantes ameaças de morte.
Quando
os livros escolares informam que a escravidão foi abolida no Brasil em 13 de
maio de 1888, há exatos 130 anos, fica faltando dizer que se encerrou a
escravidão negra – e que, ainda hoje, a escravidão persiste, só que agora é
multiétnica. São muitos os que vivem no país em condições semelhantes às de
escravidão – ou seja, estão submetidos a trabalhos forçados, servidão por meio
de dívidas, jornadas exaustivas e várias circunstâncias degradantes em relação
aos trabalhos, descanso, moradia e
alimentação, por exemplo. Comparados aos
milhões de africanos trazidos para o Brasil para trabalhos escravos, a cifra
atual poderia indicar alguma melhora, mas abrigar 160 mil pessoas escravizadas é um escândalo humano de
proporções lamentáveis. 95% são do sexo masculino, 65% identificam-se como
pardos e negros, 32% são analfabetos, 75% trabalham no setor agropecuário, e 22%
nasceram no Maranhão, origem da maior parte da mão de obra ilegal, e 59% dos
que chegam a ser registrados, voltam a trabalhar nas mesmas condições escravas.
“Levei muitos pontapés e ainda coronhadas no peito. Até hoje eu ainda sinto as
dores dessas pancadas”, comenta José Francisco de Sousa, piauiense de 46 anos.
O pior foi ouvir do chefe que os porcos eram mais limpos do que nós. Tomávamos
banho depois deles, na mesma água”, informou José Maria de Sousa, maranhense de
28 anos.
A
reportagem flagrou também escravos urbanos, no coração
de
São Paulo, vítimas do mesmo terrível crime, no campo. Em bairros nobres de São
Paulo, como o das Perdizes, famílias de alto poder aquisitivo mantiveram
domésticas filipinas em condições de escravidão. A Superintendência Regional do
Trabalho e a Defensoria Pública da União revelaram o caso depois que uma das
mulheres fugiu do quarto onde era subjugada, em um condomínio de luxo, e fez a
denúncia às autoridades. Uma das trabalhadoras que pediu para não ser
identificada, contou que fingia preparar mais comida para o cachorro da casa a
fim de poder ter “uma refeição melhor”. A metrópole também concentra 12 mil
oficinas ilegais de costura que abastecem as lojas no Bom Retiro e no Brás.
Quase sempre são os imigrantes que trabalham nelas – sem documentação legal.
Em
1995, o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu oficialmente
a continuidade desse crime – e criou uma comissão destinada a fiscalizar o
trabalho escravo. O pior é que, em vez de melhorar, a situação está ficando
mais grave. O país caminhava razoavelmente bem no combate à prática até 2013,
quando o número de ações de fiscalização começou a cair drasticamente. Naquele
ano houve verba para 185 autuações contra o trabalho escravo. Em 2014,
registrou-se a queda de 14% com apenas
160 autuações. Em 2015, foram só 155. Em 2016, foram apenas 106. No ano
passado, realizaram-se somente 88 fiscalizações, e todas de menor porte em
relação às executadas anteriormente, sendo 341 os resgatados.
A
queda no número de autuações seria uma notícia boa se não representasse, na
verdade, o contrário do que se imaginava: não é a escravidão que está
retrocedendo, mas sim, o dinheiro para fiscalizá-la que está minguando. Em
agosto do ano passado, o Ministério Público do Trabalho entrou com uma ação
civil pública contra a União para garantir verba mínima até o fim de 2017,
diante da ameaça de paralização total das ditas atividades. O chefe da Divisão
de Fiscalização para o trabalho escravo,
André Roston, afirmou que o departamento tinha então menos de 7 mil reais em
caixa, enquanto que, o valor médio de uma única ação, gira em torno de 60 mil
reais. Em outubro, Roston foi exonerado, porque incomodava. Entre os
ex-colegas, circula a versão de que Roston era “dedicado demais” à defesa do
conceito de escravidão e muito atento aos abusos. Para funcionários do Detrae
ouvidos pela “Veja”, a falta de verbas é resultado de uma dupla razão. O combate
à escravidão não rende votos em eleições, e a bancada governista nunca
escondeu seus laços com os ruralistas, que se habituaram a usar a mão de obra
em situação deplorável.
Como
exemplo, citamos o caso de Sebastião Cunha, de 48 anos e seu filho Geovane, de
25 anos. Eles vivem em Monção, município de 30 mil habitantes, a 300
quilômetros de São Luís, capital do Maranhão. Começaram a trabalhar na roça da
família aos 9 anos, idade na qual os meninos da região costumam cair na labuta.
Nela permaneceram até o fim da adolescência, e aí, saíram em busca de emprego.
Trocaram o serviço doméstico pelo mercado e viram-se obrigados a se sujeitar ao
regime da escravidão. “Pela falta de oportunidades, sempre aceitei o que
aparecia, na terra dos outros”, conta o pai. Até 2007, Sebastião não tinha
noção de que trabalhava em condições ilegais. Foi então que os fiscais o
encontraram pela primeira vez, submetido a um regime análogo ao de escravidão.
Estava magérrimo, passava fome e tinha febre. Em duas outras oportunidades ele
seria flagrado na mesma situação. Ele não é exceção: a reincidência atinge algo
em torno de 60% das vítimas da escravidão.
Mesmo
nos dias atuais, com plena ciência do problema, ele admite que voltaria a se
entregar àquela situação degradante, e até mesmo apanhando, pois se julga como
que acorrentado a um destino cruel. “Todos os dias, pela manhã, bem cedo, minha
filha de 6 anos me acorda e me pede pão”, relata ele. “Como é que vou dizer a
ela que não tenho dinheiro para comprar pão? Então tenho que aceitar qualquer
coisa, mesmo que caia novamente na escravidão, para garantir o pão de minha filha”,
diz Sebastião. Em Monção, mais da metade da população vive na linha de pobreza
(renda inferior a 140 reais por mês), 31% estão em condições consideradas pela
ONU como de extrema miséria e 64% não têm ocupação.
A
revista “Veja” visitou, no Maranhão e no Piauí, meia centena de municípios,
onde os indivíduos como os Cunhas, foram retirados pela Justiça, de trabalhos
degradantes. 75% dos trabalhadores em regime semelhante ao de escravidão, atuam
no setor agropecuário. A arregimentação dos trabalhadores segue idêntica a que
existia em 1995, quando o governo FHC
iniciou
o ataque a essa prática. Um recrutador, chamado “gato” chega à região-alvo com
a promessa de uma boa oportunidade de trabalho. Normalmente o patrão paga os
custos da viagem até o local do trabalho, e esse valor acaba por se tornar a
primeira de muitas dívidas que o empregado acumulará. Quando ele chega à
fazenda onde vai trabalhar, a comida e as ferramentas também passam a ser cobradas – e o desconto é feito no pagamento. Em pouco tempo ele deve
mais do que recebe, num processo que o põe inteiramente nas mãos do patrão. A
rotina desses trabalhadores é por si só, abominável. Eles saem para a labuta,
nas primeiras horas do dia, com apenas um café no estômago. No almoço, ao meio
dia, comem arroz, feijão e farinha, em quantidade mínima. No fim do dia, vão
dormir em um barracão coberto somente por uma lona. Não há camas, só redes, no
meio das quais é comum ver porcos passeando. Muitas vezes, a única água é a dos
córregos – em que os animais bebem para matar a sede e quase sempre urinam e
defecam. Se a imagem de uma senzala veio a sua mente, saiba que não há exagero
– as senzalas ou casas-grandes eram um pouco bem melhores.
A
evidência de que o Brasil retrocedeu para valer na questão do trabalho escravo
veio à tona em 16 de outubro do ano passado, quando foi publicada no Diário
Oficial da União a portaria de nº 1129, que alterou o conceito de trabalho
escravo e as regras para a inclusão de empresas que o adotavam em uma lista
suja. O texto eliminava os termos “jornada exaustiva” e “condições degradantes”
da caracterização da prática, limitando à escravidão à restrição de liberdade
de ir e vir. A tal lista suja, a cargo do Ministério do Trabalho, passaria a
ser atualizada apenas duas vezes ao ano. Antes dessa portaria, ela era de
responsabilidade da Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho
Escravo (Detrae), e a atualização poderia ocorrer a qualquer momento.
A
medida de 16 de outubro de 2017 tinha o propósito de socorrer o presidente Temer,
que tentava no Congresso votos para arquivamento da segunda denúncia contra ele
por obstrução da Justiça e organização criminosa. O assunto virou moeda de
negociação com a bancada ruralista da Câmara, cujos integrantes representam
proprietários rurais. Essa barganha durou pouco: pois em 24 de outubro, a
ministra Rosa
Weber,
do STF, suspendeu a portaria casuística por considerar que ela vulnerabilizava
“princípios basilares da Constituição”. A suspensão e as pressões que o governo
enfrentou acabaram levando-o a ceder – ele publicou em dezembro uma nova
portaria, que recolocava as coisas nos devidos eixos. Desde 1988, a Comissão Pastoral
da Terra vinha fazendo várias denúncias contra a Brasil Verde, que se
converteram em sucessivas fiscalizações em 1989, 1992 e 2000. Em 2016, vários
anos após o último resgate na Brasil Verde, o Estado foi condenado por
negligência. A indenização a 128 trabalhadores ultrapassou o valor de 4 milhões
de dólares. O Brasil que foi o último país das Américas a abolir a escravatura
negra, tornou-se o primeiro a ser condenado pela OEA por trabalho escravo.
Segundo
a ONU, em todo o mundo os lucros obtidos com os cerca de 30 milhões de
trabalhadores escravos chegam a 150 bilhões de dólares ao ano. Com a evolução
tecnológica, os custos operacionais ficaram mais baixos. Antigamente, o
trabalho escravo oferecia algo entre 15% e 20% de retorno anual. Hoje, esse
número fica dentro de uma margem que vai de 300% a 500%. Sob essa lógica
perversa, a escravização vale a pena. Não é de estranhar, portanto, que a
resistência a combatê-la seja tão grande. Mesmo que isso signifique ter no país
milhares de biografias devolvidas a um passado vergonhoso. . .
Fonte:
Reportagem Especial
Revista “Veja” de nº
2581 -9/5/2018
+ Acréscimos
Jc.
São Luís, 22/5/2018
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