terça-feira, 20 de novembro de 2018

QUEM É VOCÊ?




 
Se você não nasceu bonito, não é rico, não é saudável, não gosta do seu corpo, não gosta da sua existência, não nasceu em uma mansão, não tem amigos, não ama ninguém, não tem uma namorada, não tem esposa, não tem filhos, não tem uma profissão, não tem um bom emprego, não tem dinheiro, não é político, não possui um carro, não é dono de um imóvel,  afinal, quem é você?
O que você é?  O que você tem?  Você é um louco? Você é um visionário?  O que você tem a responder? Diga algo de você.
Eu sou um Espírito ainda pouco evoluído, encarnado em um homem muito pobre, feio e sozinho no mundo, que luta com muita dificuldade para sobreviver,  como outras pessoas, mas, eu tenho um tesouro muito valioso que poucas pessoas têm, e vivo apoiado nesse tesouro que me ampara, me ajuda a evoluir e me proporciona ser feliz, apesar de não ter todos os itens acima mencionados. Não sou um visionário, sou apenas uma pessoa igual a qualquer outra, com um tesouro inestimável  que me faz merecedor de amparo e proteção, que muitas outras pessoas não têm, por não terem esse mesmo tesouro.
Embora esse tesouro não seja material ele serve para ajudar muitas pessoas se tiverem merecimento. Entretanto, eu deixo ainda em segredo, dando oportunidade para que as pessoas pensem um pouco e cheguem a descobrir qual é esse tesouro.
Se ainda assim não descobriram, eu vou dar uma pista, dizendo que Jesus muito se referiu a esse tesouro e que as pessoas que o possuíssem teriam a possibilidade de conseguir tudo o que fosse necessário. Vou dizer mais: Esse tesouro é tão importante que chega até a transportar montanhas. Com certeza com mais esta dica, você já descobriu qual o tesouro que suplanta todas as demais coisas mais importantes da nossa existência terrena. Se mesmo assim, ainda não conseguiu descobrir é porque você é uma pessoa de pouca FÉ.

Jc.
São Luís, 11/6/2018

AS ESCOLHAS DO CAMINHO





 
AS  ESCOLHAS  DO  CAMINHO
O autor do livro “Longo Caminho de Volta” é Ricardo Lucena Júnior, deficiente físico e, entre suas limitações, está á reduzida capacidade de escrever por falta de coordenação motora nas mãos, cuja confecção do livro contou com recursos diversos como fitas gravadas, trechos ditados e conversas que visavam captar seu pensamento com a máxima fidelidade, principalmente com a médica Vivian Carole Moema Elinger, e esta, é a história dele nas escolhas do seu caminho.
Para cada situação na existência de uma pessoa, existem pelo menos duas opções, duas possibilidades de escolha. Fazer ou não fazer alguma coisa, ir ou não ir a algum lugar, estar ou não estar na companhia de alguém... No momento em que se escolhe uma dessas alternativas, abandona-se a outra.  Quanto ao traçado da linha de nossa existência, penso que há um ser maior – Deus – que se encarrega disso desde o momento em que somos concebidos.
O que me proponho a contar é apenas o relato simples da experiência vivida por mim, após uma escolha que considero desastrada, porque, poderia não tê-la vivido se tivesse optado no sentido inverso. Mas, como acredito haver um destino já traçado, já determinado para cada um de nós, estou certo de que apenas colori de cinza estes últimos três anos de minha existência terrena.   Nem sonhava o que estava por vir e o que enfrentaria por causa dessa escolha. Seu efeito foi equivalente a minha própria sentença de profunda mudança, mudança enxertada de muito sofrimento...
Dali em diante, eu seria inteiramente diferente. Tanto, e de maneira tão forte, que hoje posso ver pensar e sentir o mundo com uma percepção completamente nova, quase como se tivesse me desligado do ser anterior e, agora, fosse uma nova pessoa.   Passei a observar fatos e aspectos do cotidiano sob outros ângulos e o que mudou foi a ótica diante da existência.   Desde o primeiro momento, ao longo desses três anos, faço a mim mesmo uma inútil pergunta: POR QUÊ? – Até hoje não obtive qualquer resposta e, provavelmente, jamais vou obter.  
Estava no dia 28/2/1988, domingo, em Campo Grande-RJ., na casa de meu avô, curtindo o último final de semana das férias. De repente, não sei se por causa do calor aqui no Rio ou pela saudade dos amigos de Teresópolis, onde vivi minha infância e adolescência, resolvi subir a serra, pois achava que me faria bem. 1ª escolha.  Meu avô, sempre carinhoso comigo, insistiu para que eu não fosse e ficasse o final de semana com ele. Mas como o desejo de ir para Teresópolis foi mais forte, me despedi dele e fui para a rodoviária.
A viagem foi agradável. Na subida da serra a temperatura refrescou, deixando para trás o calor do Rio de Janeiro. Fiquei pensando que até então minha existência girava somente em torno do basquete, da música e da informática. Chegando á Teresópolis, fui para a casa de meus avós paternos. A fome era grande, pois dois metros de altura e cem quilos de peso exigem muita comida. Mas não era só a fome, o cansaço  também da viagem e o fato de haver dormido tarde na véspera, me deram uma lombeira e antes de dormir, pedi à minha avó que me acordasse às oito da noite.
Na hora, ao observar que eu dormia profundamente e desejando que eu dormisse até o dia seguinte, foi a contragosto que ela me acordou ás oito horas. Talvez tivesse sido melhor; quem poderia supor o que estava para acontecer?  2ª escolha. Eu  levantei rápido e tomei um banho para acordar de vez. Em pouco tempo estava pronto para sair. O meu avô ao perceber que vou sair faz as recomendações de sempre: não esquecer as chaves, não chegar tarde e levar agasalho.
Já na esquina da Rua Jorge Lóssio com a avenida, encontro o pessoal. Um alô geral e passa a Alessandra, vizinha e amiga. Fomos então até a pracinha Ginda Block e chegaram outras amigas e perguntaram se não íamos ver o circo instalado na Rua Higino.  Decidimos ir olhar o tal circo. A turma estava toda lá circulando do lado de fora. Aos pouco o cansaço de antes bateu de novo e resolvi voltar para casa e dormir.  Disse a Alessandra que ia embora e ela também não estava mais a fim de ficar ali e pediu para que eu a levasse até a sua casa e saímos. Pensei que faria bem em voltar logo e despreocupar os meus avós.
Então, eu e Alessandra tomamos o rumo da Rua Jorge Lóssio atravessamos a avenida e chegamos à calçada em frente ao novo Higino. Sei que, de repente, ainda estava de costas para a rua quando ouvi o grito de Alessandra: “Ricardo, olha essa moto!” Tentei virar de frente, mas não deu tempo. Apenas vi um farol que avançava  em nossa direção em velocidade. Num reflexo, empurrei Alessandra para o lado e senti uma forte pancada nas pernas. Tudo o que aconteceu depois é muito confuso. As imagens pintam na minha cabeça em pequenos flashes, como num sonho. A pancada nas pernas me projetou para o alto com incrível rapidez e violência, jogando meu corpo de encontro a um carro que passava por ali, e que, acabou por lançar-me de cabeça no chão do outro lado da rua. O choque brutal e o impacto com o chão. . .  Senti um zumbido no ouvido e uma forte e nauseante tonteira tomou conta de mim. Havia uma espécie de torpor em todo o meu corpo e não fazia a menor ideia do que estava acontecendo. Não parecia real! Era como um pesadelo, e a perna direita doía horrivelmente de forma insuportável. . .
Vi muitas pessoas em volta de mim, curiosas, acotovelando-se para chegar mais perto  e diziam que eu estava morto, as vozes pareciam distantes e de repente ouvi a sirene da polícia. Ouvi uma voz implorando para me levarem para um hospital. Um policial aproximou-se bem do meu rosto, olhou-me e perguntou se eu ainda estava vivo.  Completamente imóvel, entrei em desespero quando percebi que não podia mostrar nem a ele e a ninguém mais que não morrera. Pensei que aquilo só podia ser um pesadelo e não estava acontecendo comigo. Tentava mover as pernas, os braços, um dedo pelo menos e nada. Tentava falar e os lábios não obedeciam; continuava imóvel. A tonteira e a dor da perna aumentavam. Eu fazia um esforço enorme para me manter lúcido, para acordar de vez e acabar com aquele pesadelo, mas nada conseguia. . .
Senti quando me levantaram do chão e me colocaram na carroceria de uma pick-up. Fiquei apavorado, pois não sabia se estava sendo levado para um hospital ou para uma capela. Havia outro corpo estendido ao meu lado. Quem seria? Alessandra? O carro começou a rodar rápido e minha cabeça rodou de vez e apaguei. Não sei quanto tempo depois, acordei e percebi que estava num hospital. A dor da perna havia passado, mas a tonteira aumentara ainda mais. Um rosto se aproximou do meu e reconheci a doutora Vivian. Eu não podia dizer a ela que a estava vendo, mas ela devia saber disso por que segurou meu braço e ouvi sua voz me tranquilizando. Sua presença e sua voz fizeram com que me sentisse amparado, cuidado e seguro e voltei a apagar. Só muito mais tarde vim “a saber” que aquilo não era um pesadelo mas que eu estava entrando em coma.
Enquanto estava nessa situação, um homem toma minha mão e me leva a um prédio alto e branco, subimos e chegamos a um andar  onde vejo a figura de meu pai que morreu há quinze anos.  Ele me chama e diz que posso ir ao seu encontro e que nada de mal vai acontecer. Sinto uma vontade de ir até ele, mas o homem que me levou segura meu braço e não me deixa ir impedindo  e me puxa de volta. Parece uma luta de influências. A de meu pai que me pede que vá ao seu encontro e a do homem que não me deixa ir. Meu pai então percebe que não posso ir e vai embora. De novo me encontro diante do prédio e tudo se repete diversas vezes sem interrupção, como um vídeo que se recomeça sempre do mesmo ponto, só que não tenho controle daquilo. Por vezes, o filme muda. Um farol muito forte me ofusca e vem de encontro a mim e a moto passa em alta velocidade e se repete também. Ora com nitidez, ora em imagens confusas sem saber quando começou ou vai terminar.
Havia perdido a noção de qualquer coisa e, mais ainda, do tempo. Essa era a primeira lembrança que tenho depois de haver apagado no hospital, após a médica Vivian dizer que tudo ficaria bem. É como se tivesse caído em um vácuo e não sei quanto tempo mais tarde comecei a ver os dois filmes passando velozes diante de mim. De repente a projeção dos filmes é interrompida e ouço ruídos  em torno de mim. Tento me mover e percebo que não posso; tento abrir os olhos mais parece que eles estão abertos, porém não vejo nada. Sinto que estou acordado. Pessoas conversam. Um homem diz achar melhor esperar mais vinte e quatro horas. Outro dizia que era melhor fazer logo a punção. A dúvida acabou quando mexeram na minha cabeça. Pareciam retirar ataduras. Afinal, o que havia acontecido comigo? Não me lembrava de nada! Num esforço desesperado, tentei falar e não consegui mover os lábios. Em seguida, senti uma dor insuportável, do lado direito de minha cabeça como se uma agulha perfurasse meu cérebro. O desespero não demorou muito e apaguei novamente. Não sei quanto tempo fiquei apagado e quando acordei ouvi: “Quem vai descer com ele?” Então ouvi a voz de minha mãe dizendo para o enfermeiro: “Eu vou com ele”. Eu senti que não estava sozinho e ouvi o enfermeiro dizer que o médico já estava na sala de tomografia. Eu não fazia a mais leve ideia do que era aquilo. Não sei quanto tempo fiquei assim, pois apenas podia pensar, ouvir e cheirar.
Não sei quanto tempo mais fiquei, mas meu novo acordar foi diferente. Pisquei os olhos e, de repente, vi  um rosto amado. Era Daniela, minha irmã e ela falou: “Ricardo, você está me vendo? Você piscou os olhos, fale comigo.” Eu não conseguia falar e pisquei os olhos de modo que ela entendesse que eu a ouvia. A alegria que vi em seu rosto me fez perceber que ela havia entendido. Mal tivemos tempo de curtir aquele momento e entraram no quarto os dois enfermeiros que me atendiam, Marília e Geraldo. Iriam me levar para fazer uma série de exames um pouco demorado. Perguntaram se eu havia entendido e eu pisquei os olhos uma vez concordando. Fui levado a um lugar com uma porta de vidro e minha mãe só foi até ali e me disse: “Não tenha medo, tudo vai dar certo.”
Aquilo não era um exame, pois ouvi a voz de Marília que informava ao médico sobre os bisturis, pinças e outros instrumentos de que ele iria precisar que já estavam prontos. Eu não ia fazer exames; seria operado. Estava assustado e com muito medo. Ouvi também falar sobre a anestesia. E se eu não mais acordasse? Pelo comentário do médico a cirurgia era na cabeça. O pavor tomou conta de mim e tentei gritar ficando só na vontade e no desespero. Ser apagado sem saber por que. Logo me apossou um torpor e em seguida apaguei. Devia ter dormido bastante porque a voz do médico me dizia: “Ricardo, vamos acordar!” Afinal, eu estava vivo, acordado e entendendo tudo. Pela primeira vez eu me dava conta de meu estado físico. Preso na cama, sem movimentos, com tubos por todo o lado. Trocaram minhas fraldas e não podia urinar ou evacuar sem um ajudante, inteiramente dependente. Eu estava esquelético.
Minha mãe pediu ao enfermeiro que nos deixasse a sós porque ela queria conversar comigo. Mal podia esperar, afinal iria ter uma explicação das perguntas que giravam em minha cabeça. O relato de minha mãe deixou-me completamente atônito. Tinha sido atropelado em Teresópolis por uma moto que subiu na calçada e me atingiu, e a gravidade da situação fez com que eu fosse transferido para a Beneficência Portuguesa, no Rio de Janeiro, onde fiquei em coma profundo durante trinta e sete dias onde me encontrava. Soube depois que o motoqueiro havia bebido e estava drogado. Eu queria saber mais. Alessandra sofrera apenas algumas escoriações, quanto ao motoqueiro não teve a mesma sorte, pois morreu após dar entrada no hospital de Teresópolis.
Senti enorme raiva tomar conta de mim, diria mesmo um ódio. Como pode uma pessoa beber e se drogar e sair dirigindo uma moto que subiu na calçada atropelou pessoas, me deixa neste estado e, como se não bastasse, ainda se dá ao luxo de morrer sem se responsabilizar por nada? Naquele momento era isso que eu sentia. Como se a vida tivesse sido muito generosa com ele, como se premiasse a irresponsabilidade e o descaso. Era isso o que achava; o motoqueiro estava livre, havia morrido na santa paz de Deus, deixando um rastro de sofrimento. Naquele momento, desejei estar em seu lugar na companhia de meu pai. A morte sem sofrimento me parecia uma benção. Minha mãe percebeu a minha revolta e me disse que de melhor eu podia fazer era procurar entender as fatalidades, que não se pode evitar, não cabendo apurar responsáveis por ela. Fiquei com raiva de minha mãe. Não era fatalidade, mas sim irresponsabilidade de quem não estava mais aqui para ouvir poucas e boas ou, levar umas porradas e aprender a se comportar como pessoa civilizada. Aquela ideia de bom samaritano que ela sempre ensinava, parecia naquele momento fora de propósito. De que adiantava isso se os outros não nos respeitam da mesma maneira? Para quê? Vem um idiota e destrói a sua existência numa fração de segundo, e o que é pior, depois de tudo, se manda como se dissesse: “Olha aí, cara, dane-se você que eu vou descansar”. Que ódio!
A sorte da gente é esquecer a dor física depois que ela passa.    Era o pessoal do hospital comentando a quantidade de gente acidentada com traumatismo craniano e graves problemas de medula. As mortes se multiplicavam; as causas eram as de sempre, só que em número jamais imaginado. Atropelamentos, choques com motos e carros, bebedeira ao volante e drogas. O trânsito parece um polvo assassino que, a cada dia, destrói mais e mais pessoas. Mas a verdade é bem outra. O trânsito não é o culpado de nada. Ele é uma invenção para atender a nossa necessidade de ir e vir, de locomoção. Ele é o reflexo do homem irresponsável que bebe, que se droga e do violento que mutila e mata impunemente, protegido por leis deficientes. A  rotina de um hospital que atende a acidentados é a prova mais clara, dura e fiel da irresponsabilidade com que os homens lidam com a própria existência, e o que é pior com a de seus semelhantes.
Manhã de sábado, de repente, como qualquer bebê em fase de evolução oral, balbuciei a palavra mágica “mãe”. Geraldo ficou surpreso e pediu que eu repetisse. Consegui falar mais claro. Minha mãe logo chegaria e resolvemos fazer-lhe uma surpresa. Chegou aflita para saber como tinha passado a noite. Depois de me beijar, foi guardar algumas coisas no armário e ficou de costas para minha cama. Quando ela me ouviu chamá-la, o susto e a emoção foram grandes. Ainda não articulo frases, mas ao menos já dizia o que queria, como pedir água e coçar as costas, que eram as necessidades mais urgentes. Foi aí que comecei a me tocar de que não era vítima do mundo e de que não era o único deficiente jovem sobre a face da Terra. No sábado seguinte o médico Valter entrou no quarto e disse que eu teria alta e poderia continuar o tratamento em casa. Mal podia acreditar, depois de três meses estava fora do hospital.
Em casa, minha revolta me fazia encarar a deficiência como uma espécie de castigo, ao ver as outras pessoas normais. O que não conseguia recuperar em equilíbrio recuperava em força no braço direito. Passei a usar esse braço para agredir o mundo. Quando estava na cadeira de rodas, batia portas, dava soco nos móveis e derrubavas coisas pela casa. Um dia minha mãe chegou do trabalho e encontrou a família  em polvorosa. Eu havia me enfurecido a tal ponto e tão violenta com a minha situação, que quebrara o vidro da porta que liga a sala de visitas à varanda, e batera em minha  irmã  Daniela.  Minha mãe também saiu do sério, pela primeira vez, desde meu acidente. Não havia ternura ou doçura ou compreensão em seu rosto. Havia cansaço e raiva. Ela juntou tudo o que eu já vinha aprontando, imaginou a cena do vidro e dos tapas que deu em  sua irmã, somou, multiplicou e me disse o diabo. Minha mãe estava muito braba. Como eu agredira minha irmã daquele jeito? Como causava danos a casa, quando cada tostão que ela ganhava era para custear meu tratamento? Com que direito eu infernizava a vida de todos daquela forma? Ela e toda a família estavam farta de sua ignorância. Lidar com sua deficiência já era uma barra. Lidar com sua loucura era demais. Depois do desabafo, ela sentou e chorou muito. Não fiquei nem um pouco comovido porque estava com raiva dela, das minhas irmãs e da minha existência.
Naquela mesmo noite ela contou que o que ganhava não era suficiente para sustentar meu tratamento e a lista de despesas era imensa. Aluguel da cadeira de rodas, os salários do enfermeiro, do fisioterapeuta, da fonoaudiologia, da terapia ocupacional, remédios, alimentos especiais e outras coisas das quais eu nem fazia ideia. Um grupo de parentes e de amigos contribuía mensalmente para ajudá-la a pagar as despesas todas. A lista das pessoas que ajudavam  era grande e ela se sentia desconfortável com aquela situação. Era a assim que ela conseguia manter, e era a primeira vez que eu tomava ciência dessa informação. Até então, esse lado da história tinha ficado distante de mim. Tenho certeza de que minha mãe não escolheu por acaso aquele momento para me contar essas coisas. Estava me dando um tapa com luvas de pelica. Era como se dissesse: “Olha filho, você se achando um zero a esquerda no mundo e tanta gente preocupada com você e lhe desejando o bem.” Hoje, penso nisso e me dou conta dos inúmeros sacrifícios a que todos tiveram de se submeter. Naquela época não pensava assim. Só pensava no que pudesse me trazer de volta a chamada normalidade.
Hoje, posso ver pensar e sentir o mundo com uma percepção completamente nova, quase como se tivesse me desligado do ser anterior, ignorante e vingativo e, agora, fosse uma nova pessoa. Passei a observar as pessoas, os fatos e aspectos do cotidiano sob outros ângulos e o que mudou foi a minha ótica.  Deixei de pensar na minha existência para pensar mais na Vida.
O último censo do país indicou a existência de catorze milhões de deficientes. Não é um número de se jogar fora ou esquecer. São seres humanos que, de alguma forma, foram atropelados na existência. E esse número não é resultado de nenhuma catástrofe. Esses milhões de mutilados são os frutos da irresponsabilidade, da violência e do descaso das autoridades do país. É preciso fazer alguma coisa, para impedir que essa deficiência se estenda a outras áreas. O deficiente físico não é um coitadinho, um ser frágil que necessita de leis especiais que o protejam;  precisamos sim que o Denatran e os Detran   promovam leis rígidas para evitar os desastres que fazem os deficientes e promovem a morte das pessoas. O deficiente físico precisa sim daquilo que todos os seres humanos precisam: A Compreensão e o Respeito da sociedade. . .

Fonte:
Livro “Longo Caminho de Volta”
Autor: Ricardo Lucena Júnior
+ Supressões e modificações.

Jc.
São Luís, 2/9/2018